terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Escritos #3: Mudanças

Seus olhos abriram devagar. O mesmo ritual de sempre. A mesma canção: o choro descontrolado. Não havia pressa para atender, ou pelo menos para tentar consolar. Era a mesma história de sempre, o mesmo conflito de todos os dias. E aquela semana estava apenas começando.

Segunda-feira.

Escutou o pai gritar algo da sala enquanto aumentava a TV tentando abafar os sons que vinham da mulher em desespero. Conseguiu identificar algumas palavras em meio a chuva de palavrões. Coisas como “ir embora”, “não me ajuda em nada” e derivados. Coisas comuns a rotina da casa, algo que ele vinha acompanhando desde pequeno.
Os soluços recomeçaram na sala, acompanhados de uma onda de indignação. Já era previsto que isso aconteceria. Uma reação direta ao descaso.
Fechou os olhos e tentou pensar em outras coisas. Só faltavam três horas para ir ao trabalho e, com um suspiro pesado, pensou no quão difícil o dia seria.
Escutou o barulho de algo se chocando e com o coração disparado correu para verificar o que era. O pai havia esbarrado na tábua de passar.

Alívio.

Lembrou-se de quando, há algum tempo, este mesmo senhor esbarrava em brigas de porta de bar e em como carregava todo o sofrimento da família nas costas. Desnecessário. Sempre o foi. Sentiu um aperto ao pensar nisso, seu estômago se retorcia com a raiva. As vezes as lembranças doem mais do que o presente. Seria esta uma constatação da melhora das coisas ou apenas de uma forma diferente de encará-las?

- Amanhã eu trabalho, só para lembrar – gritou enquanto voltava para o quarto, sabendo que mais uma vez seria ignorado.

Ao deitar, se encolheu na cama como que tentando se defender. O travesseiro bem apertado contra o ouvido e um desejo insano de que o sono viesse logo.

Ele enfim veio.

Acordou minutos depois, a respiração entrecortada, o coração apertado.

- Está tudo bem, querido? – reconheceu a voz doce que ressoou ao seu lado.

- Está sim, amor. Foi apenas um sonho – conseguiu responder, voltando para a realidade.

- Volte a dormir. Você terá um dia especial amanhã. Todos vão adorar sua tese de pós doutorado – e a mulher adormeceu enquanto o abraçava.

- Dia especial – sussurrou em meio ao silêncio, lembrando-se do tempo em que mesmo a faculdade era um sonho que parecia distante.

Deixou-se submergir em pensamentos enquanto constatava o quanto os sonhos, as vezes, podem ser janelas para aquilo que queremos esquecer. Seus olhos vidrados no teto o levavam para um lugar distante enquanto adormecia e constatava que a estrada pela qual ainda tinha que percorrer não poderia ser mais árdua do que a que já havia percorrido.

Autora: Erica Azevedo

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe uma autora feliz, comente :)