terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O que você realmente vê?

Pergunta 

O som do despertador ressoou em minha mente e eu me vi arrancada de um sonho turbulento. Ergui o braço para pegar o celular na mesinha de cabeceira e um desejo profundo tomou conta de mim.

“Por favor, que eu o tenha adiantado como da última vez”.

Forcei meus olhos cansados a enxergar os números não desejosos. Nunca foi tão ruim encontrar aquele pequeno cinco brilhando como se o despertar fosse a melhor parte do dia. Não, não era. Eu só havia dormido quatro horas e minha bateria não tinha sido recarregada totalmente e isso era algo que eu carregaria ao longo do dia, como uma ferida aberta que teima em arder.

Pulei da cama sabendo que perder o horário significaria também perder horas no trânsito. Nesses longos 21 anos que me dedico a essa cidade de contrastes chamada São Paulo, fui programada diariamente para respeitar suas regras de sobrevivência e a mais vital delas é a de que cada 10 minutos perdidos em sonos prolongados vira uma hora de trânsito indesejado.

Desenterrei as últimas fatias de pão de forma do armário e finalizei o suco que restou do jantar da noite anterior agradecendo por não ter que me preocupar em fazer um café. Lancei uma última olhada no espelho antes de sair e não pude deixar de notar que a minha aparência vem se tornando cada vez mais esquisita. Talvez a quantidade de estresse pela qual venho passando esteja se tornando cada vez mais visível, afinal, trabalhar, estudar, badalar e desejar custa tempo, dinheiro e saúde. Ou talvez seja a minha preocupação com a solteirice que esteja se tornando evidente. Sejam quais forem os fatores, constato que preciso dar um basta imediatamente neles.

Minha pequena reflexão no espelho do banheiro de casa quase me faz perder o ônibus do horário de sempre e isso me causaria, além de uma pequena tentativa de explicação ao chefe, alguns momentos de hora extra. O que não seria bem vindo ao momento. Corre um boato na empresa de que a partir do próximo mês ao invés das horas serem descontadas no nosso horário de trabalho, começaremos a receber por elas. Com isso poderei economizar para ter aquele celular novo, top de linha, que está para sair. Claro, também estou contando com as preciosas prestações que vou conseguir com o meu novo cartão crédito, mas isso eu deixo para uma próxima.

Já estou saindo do trabalho e a caminho da faculdade quando alguém me entrega um pequeno folheto. Ela era apenas mais uma daquelas pessoas que tentam atrapalhar a nossa rotina quando se está atrasada para algum compromisso, tentando demonstrar o quão importante pode ser um pedaço de papel, que, muitas vezes, apenas se resume a algum contato de dentista ou algum daqueles “compre a armação dos óculos e ganhe o exame grátis”.

O guardei no bolso do casaco e o teria esquecido, não fosse o meu desespero em encontrar a chave de casa duas horas depois e já na faculdade. Mas, em meio a esse meu momento de desespero, tomei o cuidado de reparar no pequeno pedaço de papel pardo e com apenas uma frase em letras garrafais:

“O que você realmente vê?”

Fiquei alguns minutos tentando absorver aquela pergunta absurda e ao mesmo tempo entender o porquê de uma senhora na rua se dar ao trabalho de me atirá-la. Foram longos minutos de indagação até um pensamento me assolar: Quem era a senhora que me deu esse papel?

Senti uma palpitação estranha em meu peito e até mesmo cheguei a pensar que estava ficando louca. A verdade é que eu nem ao menos cheguei a reparar na senhora ou poderia até ser um senhor, uma criança, um jovem… A verdade é que eu nem ao menos lembro seu rosto ou se chegou a me dizer alguma palavra.

Tentei refazer mentalmente o meu caminho até o trabalho, buscando rostos, situações, formulando labirintos na minha mente abarrotada e ao mesmo tempo deserta. O esforço chegou mesmo a fazer uma dor latejar contra a minha têmpora e a massageei por um tempo buscando alívio.

Nunca pude chegar a pensar que uma pergunta me fizesse ir tão longe dentro da minha mente. Porque a partir do momento que constatei que tenho vivido na superfície das relações, comecei a averiguar meus laços que julguei mais profundos, como relacionamentos, e até que ponto de fato os vivi. E me permiti ir mais longe. Fiz uma varredura sobre a minha postura como individuo, como cidadã, como um ser ativo e em nenhum momento a pergunta deixou de ressoar:

“O que você realmente vê?”




Autora: Erica Azevedo

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